A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE PLATÃO
Monografia para aprofundamento de tema na Disciplina Metodologia da Pesquisa Filosófica do Curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob a orientação do professor: Antonio Carlos Martinazzo.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS 1998
"A justiça nada mais é do que a harmonia que se estabelece entre as três virtudes: temperança, fortaleza e sabedoria, Quando cada cidadão e cada classe social desempenham as funções que lhes são próprias da melhor forma e fazem aquilo que por natureza e por lei são convocados a fazer, então se realiza a justiça perfeita." "...Pouco importa se exista ou possa existir tal cidade, baste que cada um viva sob as leis dessa cidade...".Platão
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
I - Panorâmica do Pensamento Platônico
1. A Filosofia Platônica
2. O Mundo Material
2.1. O Mundo Ideal
3. A Concepção Platônica de Homem
3.1. A Alma em Platão
II - A Concepção Política em Platão
1. A Política Ideal e a Realidade Histórica
2. O "Justo Meio" e a Arte Política
III - A Concepção Filosófica de Platão
1. O Estado Ideal
1.1. O Filósofo como Paradigma do Estado ideal
2. O Homem de Estado e a Lei
2.1. A Finalidade das Leis
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
Na atualidade a compreensão da política como pertencente a existência humana é algo que se faz mais necessário a cada instante, pois, não pode o homem habitar num mundo ao qual seja instrumento, mas sim construtor do processo social. Contudo o aprendizado necessário para o exercício da atividade política como prática coletiva, se dá mediante modelos que podem ser seguidos. Platão ao desenvolver sua teoria política aliada à vida prática, possui como referência o mundo ideal no qual a filosofia é aliada para a compreensão das formas de governo. A possibilidade do Estado somente existe enquanto possibilidade de exercício.
A concepção do ateniense não se desvincula a política da filosofia, ao contrário, ambas se complementam quando apontam o filósofo como o mais indicado a assumir o posto de governante. As contradições existentes no pensamento de democracia existentes, devem ser vistas com base no contexto ao qual sua teoria foi concebida. Assim, o objeto central é entender o termo cidadão no seu sentido pleno. Mesmo que seja algo inalcançável, isto é, seja uma utopia.
I – PANORÂMICA DO PENSAMENTO PLATÔNICO
Platão nasceu em Atenas, em 427 a.C. O seu verdadeiro nome era Aristocles (nome de seu avô), e Platão era um apelido. Alguns afirmam que ele tomou esse nome pela modo amplo de seu estilo ou ainda pela largura de sua fronte. Seu pai tinha orgulho de fazer parte da descendência do rei Crodo, e sua mãe afirmava ter parentesco com Sólon. Era, portanto, óbvio que Platão, desde a juventude, visse na política o seu ideal: a família, a inteligência e as atitudes pessoais, tudo movia naquela direção. Aristóteles afirma que Platão foi o primeiro discípulo de Crátilo e, depois, de Sócrates.
É provável que Platão freqüentou Sócrates, não para fazer da filosofia o escopo da própria vida, mas para preparar-se melhor, através da filosofia, para a vida política. Isso não fez, no entanto, que sua vida seguisse o rumo desejado. Platão teve o primeiro contato com a vida política por volta de 404-403, momento de ascensão da aristocracia e de seus parentes, Cármides e Crítias chegaram ao poder. Os métodos usados por estes, no entanto, causaram em Platão uma experiência decepcionante e amarga. Em 360, após a morte de Sócrates e de se manter afastado da vida pública, retorna a Atenas onde permanece na direção da Academia até 347, ano de sua morte. Seus escritos somam ao todo o número de 36 obras; as quais no decorrer nos deteremos em alguns deles, que consideramos relevantes para a efetivação de nossas pesquisas.
1. A Filosofia Platônica
As doutrinas platônicas passaram por múltiplas evoluções e transformações de que os diálogos nos dão testemunho. Os autores estão de acordo sobre a classificação desses escritos em três grupos:
a) Diálogos da Juventude[1]de Platão, que se distingue por seu caráter socrático, isto é, preocupações quase exclusivamente antropológicas, éticas gnosiológicas. Os da segunda categoria deste primeiro grupo mostram, já o esboço da teoria das Idéias, por exemplo, o belo em si, as quais, porém, ainda não são concebidos como substância reais e independente, e sim como caráter geral, comum a tudo o que é, bom e belo, como tipo o que nos leva a uma analise fenomenológica de casos concretos. Juntamente com a preocupação de reduzir a virtude e o seu objeto, o bom e o belo ao seu tipo, temos aqui ainda a tendência de sistematizar todas as virtudes entre si (ao contrário do ensinamento socrático, que não era sistemático).
b) A segunda nos dá uma idéia madura do pensamento platônico e manifesta um considerável aumento de problemas, tais como ontológicos e psicológicos. Aqui temos a doutrina das idéias substantivas, que constituem o ser, o mundo real pura e simplesmente em oposição ao mundo do devir, sendo o primeiro o objeto da inteligência, ou da ciência propriamente dita (dialética), ao passo que o segundo, o mundo do devir pertence, como objeto, a sensação e a opinião, falha enganadora. Nestes diálogos, Platão estabelece a sua doutrina sobre imortalidade da alma; sobre a opinião verdadeira como transição a ciência, sobre a recordação que é, em ultima análise, a fonte para conhecermos as idéias. É ainda nesse diálogos que Platão coloca as duas doutrinas em base mais larga, metafísica, antropologia - psicológicas. Os diálogos dessa época se caraterizam por uma forma literária esmerada, ao mesmo tempo que manifesta em dogmatismo rigoroso. Apesar desse tom dogmático, entretanto, mostra-nos também, o quanto Platão lutou pela certeza e pela verdade. Finalmente, nesses diálogos tomou em consideração outros sistemas filosóficos, o que lhe deu algo a precisar sempre mais o seu próprio pensamento.
c) A última classe de escritos são os de Platão velho, como por exemplo, o livro das Leis. Aqui o filósofo desce das alturas de sua especulação metafísica, para se preocupar de problemas do mundo concreto e da vida política e moral quotidiana. Em suma, uma ocupação mais intensiva com a realidade terrestre. Nesse sentido Platão empreende uma espécie de harmonização de seu próprio pensamento com os de outros, uma atitude intermediária com relação aos diversos sistemas filosóficos.
As ciências naturais ocupam maior espaço, principalmente a especulação matemática dos pitagóricos fascina o velho Platão. O problema das idéias se torna, grandemente, um problema de predicação lógica. A forma geral desses diálogos é, em geral, mais sóbria que a dos escritos anteriores. Para compreender a filosofia de Platão, cumpre localizá-la em seu ambiente conatural: impasse da especulação filosófico-metafísico com os eleatas e Heráclito (soluções oposta insuficientes, por falta de distinção, no próprio domínio do ser). Cumpre, então, ligar todo este impasse à personalidade de Platão poeta. Daí o caráter dogmático da metafísica platônica; o menosprezo pela realidade material que se opõe num dualismo, ao ser das idéias; daí também a preocupação de uma fundamentação da mesma base sólida inabaláveis (contra o hedonismo dos sofistas); daí a problemática do conhecimento certo (contra cepticismo estéril da sofística); daí a busca quase fanática da verdade como único valor.
2. O Mundo Material na Filosofia Platônica
No primeiro grupo de seus escritos Platão nem menciona a realidade material como problema, a não ser uma única vez, no Crátilo, onde ele condena o Heraclitismo, dizendo que os criadores da linguagem deram nomes às coisas materiais e transpondo a sucessão de seus pensamentos e de suas imaginações para a realidade material.
De resto, Platão fala da realidade concreta, sempre num contesto antropológico ou moral, para exemplificar ou para corroborar seu ponto de vista. Entretanto, nos seus escritos do período de transição já se prepara a oposição entre concreto e idéias, se bem que Platão, por enquanto, só se refere ao domínio moral ou estético (o bom em si contra as coisas boas e o belo em si contra as coisas belas). A mesma oposição também já se desloca na distinção entre saber e opinião (por exemplo, no Górgias e no Mênon), ainda que também aqui, Platão permaneça no campo da antropologia e da Ética (virtude = saber). Nos escritos da idade madura, encontramos, com várias mudanças, a teoria de dois mundos, fundamentalmente diversos: o mundo das essências ou das idéias e o mundo material, mundo do devir.
2.1. O Mundo das Idéias
No Banquete, Platão, indagando a natureza do amor, elabora uma concepção do mundo que culmina no belo em si. Já não se trata apenas de um fenômeno geral, chamado belo (equivalente mais ou menos a um conceito abstrato), mas de um ser que é sempre, não nasce nem perece, não aumenta nem diminui, não se chama belo apenas segundo algum aspecto ou em algum dado momento, ou em um determinado lugar somente; não consiste em determinada relação a certas pessoas, para as quais é belo, sendo feio para outros; não pode ser representado pelos sentidos, nem existe apenas no pensamento ou nalguma ciência não se acha em nenhum outro, quer em algum vivente, quer na terra, quer no céu, ou em outro lugar qualquer; mas é ele mesmo, segundo seu próprio modo estando só consigo mesmo. Um ser que permanece idêntico.
O singular, concreto, é a negação de todas as qualidades acima (embora Platão não diga tão expressamente, limitando-se a afirmar que o mundo material é imagem desse belo em si de que participa de tal maneira, que o belo em si não sofre aumento, nem diminuição, nem é afastado de forma alguma por uma participação). Temos, portanto, aqui, o paralelismo.
Para caracterizar o mundo material de Platão, basta aplicar-lhe negativamente as qualidades do belo em si, as coisas deste mundo nascem e perecem, não são eternas, crescem e diminuem, são variáveis, relativos com respeito as pessoas, lugar, tempo, objeto de sensação Platão o mantém através de todos os seus escritos e, na fase de que estamos falando, ele pouco se preocupa com o problema da matéria primordial, como a de que todas as coisas materiais são constituídas, e que lhes confere a materialidade; tão pouco Platão indaga a respeito da estrutura interna dos seres materiais, como por exemplo, o fizera Demócrito. A única coisa que ele faz, é determinar mais ou menos vagamente, o grau de ser que compete ao mundo material. Este trabalho de precisão é feito, de maneira limitada (do ponto de vista da imortalidade da alma) no Fédon[3]. Platão excetua a alma humana do mundo material; ela tem mais afinidade com o mundo da idéias do que com aquele.
Existe antes do corpo, e depois dele. É independente do fluxo perpetuo das coisas (contra Heráclito, invocado, no entanto, como autoridade no argumento de Platão; Heráclito havia dito que a luta é o pai de tudo e que as coisas nascem sempre de seu contrário. Ora, argumentos, Platão, onde há morte, deve haver vida! É de notar, entretanto, que o princípio de Heráclito da contrariedade é corrigido, aqui, pela teoria pitagórica da metempsicose que inclui a preexistência da alma, desta forma teríamos o argumento: o corpo morre, a alma é indivisível e não dissolve, portanto, ela permanece. Dá a vida a um novo corpo. Logo, a vida nasce da morte), sendo do fluxo das coisas, tendo afinidade com o mundo ideal, a alma é, portanto, mais se do que o corpo que é material. É importante verificar que, Platão insiste na indivisibilidade da alma. Ora, só o mundo das idéias é indivisível, e com isso imutável.
O mundo concreto, ao contrário, é composto, mutável, perecível, (temos aqui, por conseguinte, a generalização explicita do que Platão já dissera, implicitamente, no banquete). Nesse argumento, Platão exclui do mundo das idéias a opinião dos atomistas e de todos os que afirmam que o ser resulta da composição de partes materiais; Platão combate a opinião, como se a alma fosse apenas a harmonia dos elementos que constituem o corpo. Heraclitismo, atomismo, teoria da harmonia, podem ter um valor relativo, com respeito ao mundo material, porém com as ressalvas que o mundo material não é, propriamente ser. Esta idéia é claramente expressa na Republica[4].
Platão distingue aqui, dois reinos, um pertencente à instituição intelectual. O outro a sensação. Em seguida ele descreve este dois mundos, na sua célebre Alegoria da Caverna[5]. Os homens no fundo desta caverna não vêem, senão sombras (as coisas deste mundo). Nos trechos seguintes, Platão fala da hipótese de estes homens serem libertados de sua prisão. Primeiramente eles se sentiram ofuscados pelo sol, mas não obstante, eles já estariam no seu conhecimento, mais perto do verdadeiro Ser. Idéias existem, assim nos explica Platão, de todas as coisas, dos seres vivos em torno de nós, das plantas, e das coisas feitas por mãos humanas.
Em outros termos, o verdadeiro Ser, mesmo das coisas materiais, não se acha concretizado na matéria e sim, no reino das idéias, onde a multiplicidade do material está expressa em si. As coisas materiais são, e no entanto não são. Estando no meio do ser puro e simples, e o Não-Ser. Vê-se, portanto, como Platão abandona, aqui, o doutrina dos Eleatas sobre o Não-Ser. Para ele, o não-ser de certa maneira é, portanto há coisas materiais, mutáveis.
No Fedro, Platão discorre mais sobre Eros, o amor, e a idéia de Belo que o condiciona. Nos escritos de Platão velho, esta doutrina continua ainda sendo a essência do ensinamento platônico. No Teeteto[6], o filósofo examina, de um ponto de vista epistemológico, (ciência-opinião) os dois mundos, determinando ainda mais o caráter relativo do mundo material. Acentuando a diferença entre saber e opinar (= sensação), Platão acentua ao mesmo tempo a profunda diferença entre mundo ideal e mundo do devir. O Parmênides examina a questão da multiplicidade dos seres materiais, e o problema, se existem idéias de todas as coisas.
O interlocutor Sócrates, parece admitir a multiplicidade dos entes materiais e afirma que há uma idéia de cada classe (espécie) dos seres se bem que, de outro lado, ele pareça hesitar em admitir idéias de coisas vis, como cabelo, pó, sujeira. O Parmênides é, talvez, um dos diálogos mais difíceis, portanto está cheio de aporias a respeito da Teoria das Idéias, aporias que ficam sem solução. É de notar, que neste dialogo, não é Sócrates que está proferindo suas teses, e sim Parmênides, exortando este a levar a teoria das idéias às ultimas conseqüências. No Sofista[7], no qual também o Eleata é o personagem principal, há uma polêmica implícita contra os materialistas. Embora estes possam ser induzidos a admitirem fora da matéria, algo incorporal, seu conceito de ser é insuficiente e está mesmo errado quando o definem como o que tem poder de agir, de qualquer maneira, sobre outro, ou dele padecer.
Em outras palavras, o ser corporal, enquanto movido por algo incorpóreo, não é ser propriamente dito. No mesmo diálogo (Sofista), Platão entende o não-ser das coisas materiais, não com relação às idéias, mas também enquanto cada ser é diferente do outro; (não é o outro, é limitado). Já no Filebo, que se caracteriza, de maneira geral, por um exame mais detalhado do mundo material, encontramos, enterrando, a mesma oposição entre idéias e mundo. Igualmente, ainda no Timeu que divide claramente o que sempre é e o que sempre devem.
Corpóreo é vir-a-ser são sinônimos, assim como ideal e ser. O segundo passo dado por Platão, na sua problemática a respeito do mundo material, é o determinar as relações que existem entre este e o mundo das idéias. Na primeira fase da Teoria das Idéias, Platão explica o mundo material apenas por uma participação das respectivas idéias, estando estes dois na relação realidade-imagem. Há outras expressões que falam de uma presença da idéia no objeto material. Mas também aqui Platão está longe de nos dar as causas dos seres materiais. Poderia se dizer, no máximo, que as idéias são causas exemplares do mundo terrestre. Uma espécie de causalidade física é mencionada na Republica[8], onde o filósofo compara a idéia do Bem com o sol. Assim como este não somente torna visíveis todas as coisa materiais, mas também lhes dá vida, assim também o Bem em si não é somente causa de toda a intelecção, mas ainda confere bondade e ser a fundo.
O sol (material) mesmo é o filho do Bem a cuja imagem e semelhança gerado. Tudo o que se pode conhecer recebe da idéia do Bem não só a sua cognoscibilidade, mas também e sobre tudo, todo o ser, toda a entidade, vem dela; no entanto, este Bem mesmo não são esses seres, mas está além da entidades, mais sublime e rico em dignidade e força. Estes lugares parecem indicar que a primeira causalidade de todo o ser vem do Bem (sendo este, inclusive, causa das idéias), e que os seres materiais, em particular, tem como causa imediata, o sol. De fato, está concepção não explica grande coisa acerca do mundo material e de seus princípios. Mas cumpre não esquecer o seguinte, a República não é um tratado de filosofia natural; Platão, estuda aqui a organização do Estado, que ele concebe como um organismo, análogo ao organismo humano com sua alma tripartida.
Neste organismo, as partes são subordinadas ao todo, e o movimento tem a sua finalidade no bem do todo. Pode ser que Platão tenha concebido o mundo também assim. Uma indicação temos no Filebo onde se estabeleça o princípio que o devir tem como fim o Ser que sob este ponto de vista se chama Bem. Em uma palavra, Platão na República, atribui ao Bem uma causalidade final. Se além disso, o Bem exerce em causalidade física, eficiente, é muito difícil explicar. Temos uma série de passagens, em diversos diálogos[9], em que Platão dá uma atenção especial à ordem e harmonia do Cosmos (concepção pitagórica) o qual, por conseguinte, não pode ser obra do acaso mas deve ter uma alma. Esta alma move no universo e todas as coisas em particular, movimento esse que tende ao Bem como a causa final. No Timeu ainda se descreve mais minuciosamente a alma do mundo e nas Leis encontramos até um a dupla alma, uma boa, que dirige ao Bem, pela razão, e outra má, aliada aos elementos irracionais.
(É de notar que no início de sua carreira, Platão concebia a alma como algo absolutamente simples e imóvel estranha ao organismo). Na República ele abre um espaço nesta concepção, rígida pela doutrina das três partes da alma; dando-lhe assim uma afinidade maior com o corpo. Se na República ele fala apenas da alma humana, no entanto só lhe era necessário generalizar esta doutrina aplicando-a à, alma do mundo e ter assim, uma explicação do mundo em movimento (mundo material). Todas essas tentativas, porém, não dão conta, satisfatoriamente, da origem e da materialidade das coisas, assim como também não explicam a multiplicidade dos seres e o movimento, por mais que Platão se esforce de escapar às dificuldades (participação dos seres materiais em varias idéias, mistura das idéias, etc.).
Platão estuda o problema da matéria primordial, o do princípio de que as coisas são feitas assim como a questão de sua causa eficiente, mas fá-lo, ainda assim, a seu modo. Fora de uma vaga indicação no sentido de que o Bem (e o sol) dá o ser, a vida, o crescimento, às coisas materiais, Platão se põe o problema da causalidade eficiente em um único diálogo, no Timeu, que data de bem perto do fim da vida de Platão. Mantendo, todavia, o dualismo fundamental entre mundo material e mundo ideal, com seus, caracteres irredutíveis, Platão empreende nesse diálogo, uma cosmogonia e uma cosmologia, propriamente ditas.
O mundo, diz ele, foi feito pelo demiurgo que, fixando o olhar sobre as idéias como protótipo, o produziu como um ser animado. É isto, porque sempre o ser dotado de alma e de razão perfeito que um ser inanimado. O universo é um só. Nele há seres diretamente criados pelo demiurgo, os imortais deuses (espíritos que presidem aos astros); estes, por sua vez, criam os seres mortais e perecíveis. Tendo estabelecido o fato da criação do mundo (não no sentido cristão, evidentemente), era lógico que Platão previsse o problema daquilo que Aristóteles chamaria matéria primeira. De quê o demiurgo fez o mundo? Esta pergunta, para Platão, é relacionada no sentido de um em que foi feito o mundo?
O terceiro (fora dos idéias como causa exemplar e o demiurgo como causa eficiente) é o espaço vazio. Nele, o demiurgo limitou as diversas parcelas, por diversas figuras geométricas (influência dos pitagóricos). Nesta fase de sua vida Platão parece considerar, definitivamente, o matemático, como intermediário entre o ideal e o material. Aristóteles, nos diz mesmo que no fim de sua vida, Platão identificaria o matemático e as idéias. O espaço assim delimitado dá origem aos elementos de que o Timeu conhece quatro: terra, água, fogo e ar. Partindo desses quatro elementos, Platão em seguida, a origem dos seres múltiplos e de sua atividade, tendo a Razão (deuses, alma do mundo) a necessidade com outro fator igualmente importante, é pela tendência natural com que cada elemento procura o seu lugar correspondente, e pelo predomínio de um outro desses elementos que se formam os corpos mistos e que se explica a atividade desses corpos. Com isto, Platão, se achava em pleno problema da estrutura interna dos seres materiais.
Antes ele não tinha se preocupado com este problema. Parece, apenas, ter rejeitado o materialismo grosseiro do atomismo de Demócrito, que só reconhecia átomos quantitativamente diferentes, os quais se reúnem ou se separam sem intervenção de algum princípio imaterial. Aqui, no Timeu, Platão, parece adotar a teoria de Empédocles, substituindo o amor e o ódio (as duas forças motoras) pela razão e a necessidade. Isto, ao menos, quanto a estrutura física das coisas materiais, não reconhecendo, entretanto que estas coisas sejam ser simplesmente. Num diálogo posterior ao Timeu (Epinomis), Platão conhece cinco elementos: ar, éter fogo água e terra. Estes cinco elementos dão consistência e visibilidade ao mundo.
Para que as coisas sejam visíveis é preciso palpáveis, terra. Ambas únicas pelo ar e pela água. Entre estes quatro existe a proporção: fogo, água = ar, água, terra. Embora os corpos particulares sejam perecíveis, o mundo como tal, enquanto um todo, hormônios, sujeito à alma, não conhece doença, nem velhice, nem morte. Uma vez estabelecida esta tese dos quatro elementos que marcam a estrutura fundamental dos seres materiais, Platão tem como base sólida para o estudo dos corpos em particular.
Assim encontramos no Timeu uma série de considerações a respeito do organismo humano, suas doença e a cura das mesmas. Em diálogos anteriores, Platão havia completamente negligenciado este ponto, com exceção, talvez, do Filebo, onde analisa os seres materiais, descobrindo-lhes vários graus: o intermediário ou sem limite; o determinado ou que tem limites (o que está ordenado por números e medidas). Dir-se -ia que Platão, com respeito à composição dos seres materiais pelos 4 elementos, devia partir do mais simples até chegar ao organismos mais complicados.
O contrário, porém, se dá. Platão defende (com respeito aos organismos) uma teoria de descendência às avessas: os organismos inferiores nascem, por uma espécie de degenerescência, dos organismos superiores. A situação da psicologia de Platão no conjunto de suas doutrinas: o mundo das idéias e o mundo físico, tão afastados um do outro que necessitam de um intermediário. Este intermediário é a alma. É ela que dá ser, movimento, vida, a este mundo material, e é a alma que faz com que os viventes são o que são. A doutrina de Platão sobre a alma não é uniforme. Acompanha a marca geral da evolução da metafísica Platônica.
3. A Concepção Platônica de Homem
No diálogo intitulado Fédon, o filósofo estuda de modo extenso as relações que existem entre a alma e o corpo[10], não que ele tenha um interesse nestas relações, mas sim com o feito de provar a imortalidade da alma. Segundo, este diálogo, Platão expõe que a alma é destinada a dominar, e o corpo a servir. O corpo é, aliás, considerado, como algo de pouco valor, e se a alma lhe dá a vida e o utiliza como instrumento, isto resulta, em última análise, em prejuízo desta mesma alma. Muitas vezes o corpo se revolta contra a hegemonia da alma, se bem que muitas vezes sem sucesso; os processos vitais não podem deixar de serem governados pela alma.
Platão ilustra, com um exemplo, como a alma preside à vida orgânica: um tecelão durante a sua vida tece para o seu uso uma série de roupas, as quais ele gosta, sucessivamente, sendo que ele mesmo permanece e sobrevive a todas elas. Assim a alma tece sempre de novo a veste corruptível que é o seu corpo. No Fédon, embora ele estabeleça claramente uma relação entre alma (espiritual e imortal) e os processos biológicos, procuramos em vão, no entanto, a tese da união substancial entre ela e o corpo. Apenas Platão nos diz que esta união não é como diziam os pitagóricos, a harmonia do corpo. Alma e o corpo, segundo Platão, são duas coisas distintas e permanecem distintas; não se unem ao ponto de ficarem idênticas. Sendo a alma o que move o corpo ela ao mesmo tempo é auto-movimento[11]. É principalmente no Fedro, onde Platão expõe esta idéia do auto movimento (do qual ele tira a conclusão que a alma, sendo o princípio de todo outro movimento, deve ser imortal, sendo o seu movimento eminente desde a eternidade).
Neste diálogo, Platão caracteriza a vida justamente como aquilo que é movimento de dentro (pela alma)[12]. O fato de ser movido de fora é o indício mais seguro de que não possua alma. É claro que o movimento de que fala Platão, não se deve entender somente do movimento local do corpo. A alma se move, vive por si; o corpo vive, e é movido pela alma.
Nas Leis, a alma é chamada primeiro motor (analogia entre alma individual humana, e alma cosmos). Ele é causa de tudo o que é bom ou não, belo ou feio, justo ou injusto e de todos os outros contrários. A questão das partes da alma como vimos no Fédon, Platão supunha ainda a alma como uma é indivisível. Mas como ele não admite uma união substancial da alma como o corpo, e sim ao contrário considera este como que a prisão da mesma, o exercício das funções meramente biológicas não se harmonizam bem com a natureza da alma tal que a define Platão como ser espiritual imortal.
Daí temos em outros diálogos (República, Fedro e Timeu), a tricotomia, a divisão tripartida das almas. Esta possibilitava a Platão não somente de salvaguardar o caráter espiritual da parte racional, como também de explicar mais satisfatoriamente as funções não-intelectivas da alma. Até então, ele tinha afirmado, mais ou menos vagamente, que a alma dominava o corpo, movia-o. Agora ele pode determinar como isso é possível, visto que as duas outras partes, segundo ele, bem numa união mais estreita com a matéria, de que a parte intelectiva (que participa do mundo das idéias), jamais poderia ter.
Por outro, Platão, com esta doutrina, destrói, logicamente, a unidade da pessoa. Platão, falando de partes da alma não as entende como faculdades distintas, nem como mais tarde Aristóteles, no sentido das diversas funções que uma e a mesma alma é capaz de exercer, mas praticamente Platão afirma três almas.